terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Trickster



Satanás, Lúcifer, o Príncipe das Trevas, e outras denominações para o Diabo são comuns na cultura popular, mas tais pseudônimos não escondem a imagem geralmente aceita do Diabo como um ente sobrenatural eminentemente mau. Entre as culturas cristãs o Diabo é a antítese do bem e o cúmulo da malícia, do pecado, imoralidade, e a perdição. Ele é um agente do Mal. O Diabo usa malandragem, decepção, e armas piores para cumprir seus objetivos. Há outra figura malandra, o Trickster, que se encontra frequentemente na mitologia indígena norte-americana e também outras mitologias do mundo. Como o Diabo, o Trickster é malandro, prega peça nos outros, e pode causar eventos indesejáveis. Ele é, como o Diabo, sobrenatural, mas não é diabo da mesma maneira que Satanás. O que segue é uma breve comparação entre o Diabo e o Trickster com dois objetivos: 1) mostrar que o Trickster não é o mesmo diabo que se encontra no mundo cristão, e 2) mostrar que o Satanás cristão talvez seja baseado parcialmente na idéia antiga do Trickster.

Nas culturas cristãs o Diabo é conhecido por uma variedade de nomes. Satanás é provavelmente o nome mais comum e é esse nome que evoca uma imagem do Diabo como inimigo do bem e da humanidade. Outro nome, Lúcifer, indica a ambiguidade da figura porque esse nome o liga com o primeiro dos “anjos caídos” mencionados no livro de Isaías. A palavra sugere luz, e se refere ao fato que antes de sua rebelião contra Deus, Lúcifer era “filha da alva” ou “estrela da manhã” (Isaías 14:12), ligando talvez Lúcifer com o planeta Vênus. Satanás é também conhecido pela autonomásia o Príncipe das Trevas, o que sugere não apenas a sua oposição ao Príncipe da Paz (Cristo) mas também sugere a natureza de seu domínio. O “anticristo” que aparece no livro do Apocalipse, último livro da Bíblia, representa o adversário de Cristo que espalha o mal no fim do mundo mas cujo destino é a derrota com a segunda vinda de Cristo. Estes termos e outros, como Belzebu, têm raizes variadas e seus significados não são claros, mas as várias denominações indicam um ente sobrenatural com grandes poderes. O Diabo é o inimigo supremo da humanidade, a representação de tudo que é mau, e a antítese de Deus, que presumivel e ironicamente o criou.

As semelhanças entre o Diabo e o Trickster – sua qualidade sobrenatural, seus atos maliciosos, tramóias, etc. – parecem superficiais, mas estas semelhanças sugerem um relacionamento mais próximo entre os dois do que a maioria dos cristãos aceitaria. Ao Trickster nas culturas indígenas norte-americans falta a malícia e imoralidade de Satanás. O Trickster é representado como traquinas, um travesso, menos imoral do que amoral. Como o Diabo, o Trickster mente, engana, e causa prejuízo mas a maioria das vezes o Trickster também entra em apuros e, mais importante ainda, o Trickster também é visto como um agente do bem e é visto como herói cultural. Ele não é apenas um enganador esperto e cruel, mas como mostra Joseph Campbell, o Trickster é também “criador da humanidade e moldador do mundo.” Como o Diabo, o Trickster aparece na mitologia indígena sob muitas formas. A maioria das vezes o Trickster é um animal, mas de vez em quando aparece em forma humana. Nas lendas indígenas norte-americanas, o Trickster muitas vezes aparece como coiote, corvo, aranha, lebre, castor, peru, ou outros animais conforme variações regionais ou tribais.

Contos sobre o Trickster se encontram em lendas indígenas desde o Canadá até a América do Sul, os quais fazem parte de uma grande tradição de mitologia cosmogônica. No sudoeste dos Estados Unidos o Trickster provavelmente tem origem com os primeiros habitantes da região. Muitos acreditam que a famosa mas enigmática figura do Kokopelli (o corcunda tocador de flauta; ver ilustração 1) é uma representação antiga de um herói cultural dos Anasazis, o povo ancestral das tribos Pueblo no sudoeste dos Estados Unidos como os Hopis. O Kokopelli talvez represente um espírito da pajelança ou uma figura parecida ao Trickster cujo significado não se compreende completamente. O Kokopelli tem forma humana nas pinturas em pedra, mas muitas lendas do sudoeste sobre o Trickster se tratam de animais, como o Coiote. Uma das lendas conta de como o Coiote roubou o fogo e o presenteou aos homens. A viagem do Coiote aparece em uma pintura em areia dos Navajos, na qual o Coiote rouba um pau em brasa do Deus do Fogo e viaja pelos quatro cantos do mundo, para finalmente entregá-lo aos primeiros seres humanos (ver ilustração 2). Como Prometeu, o roubo ousado do Coiote serve para beneficiar a humanidade. A vulnerabilidade do Coiote nesta lenda é mais uma característica comum aos tricksters dos indígenas norte-americanos. De fato, o Trickster como quebrador de regras muitas vezes recebe o seu castigo, como muitas lendas demonstram (Erdoes & Ortiz). Outras tribos indígenas dos Estados Unidos têm lendas parecidas que mostram como o Trickster não é só um travesso, mas também age em prol da humanidade, e por isso é considerado um herói da cultura. O Castor e o Corvo são dois tricksters que participam em atos de engano mas que afinal servem aos homens.


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